Dois artigos de publicação recente chamaram fortemente nossa atenção pelo enfoque esclarecedor e incomum de um tema meio tedioso para parte dos anestesistas: o pós-operatório. Uma dessas publicações faz um chamado alarmante e a outra, atraente.
Segundo a primeira publicação, é no pós-operatório imediato que o paciente cirúrgico tem o maior risco de morrer, esse risco pode ser até 1000 vezes maior do que no trans-operatório. Sangramento excessivo, complicações cardiovasculares e respiratórias seriam as razões mais comuns de desfechos fatais no momento perioperatório. Entretanto, essas mortes não acontecem de repente, sem indícios clínicos prévios de alterações de sinais vitais minutos ou horas antes.
Até 20% dos pacientes no pós-operatório apresentam hipotensão PAM < 65 mmHg durante 15 minutos contínuos, e desses, 30% terão uma saturação parcial de oxigênio < 90% por pelo menos 1 hora no pós operatório imediato. Esses eventos, com frequência, acabam por passarem despercebidos devido ao padrão de monitoramento nas enfermarias hospitalares serem realizados a cada 4 – 8 horas, condição esta inaceitável à segurança do paciente.
A proposta dos autores é aproveitar cada vez mais a disponibilidade de dispositivos “vestíveis” (wearables), e sem fio (wireless), para o monitoramento contínuo da pressão arterial (PA), frequência cardíaca (FC), frequência respiratória (FR), saturação sanguínea de oxigênio (SpO2) entre outras, nos pacientes cirúrgicos. Em um mundo ideal, essa informação deveria ser processada e analisada por sistemas computacionais de inteligência artificial, capazes de detectar padrões em subgrupos de pacientes com algum tipo de risco especial, para evitar sequer de chegar perto de precisarem ser resgatados da agudização de seu estado de saúde.
O outro artigo, por sua vez, foca a atenção em outro aspecto importante do pós-operatório: o médico hospitalista. De acordo com a publicação, baseada num projeto piloto de manejo pós-operatório de pacientes urológicos, os especialistas médicos com maior expertise e melhores resultados nessa área são os anestesistas treinados e incorporados como hospitalistas.
Hospitalista é o especialista médico que possui uma compreensão além da clínica, levando em conta processos, fluxos, custos, e alternativas de tratamento que impactam na saúde e conforto dos pacientes e na economia hospitalar. Ou seja, médicos hospitalistas atuam na instituição inteira avaliando eficácia de antibióticos, possibilidade de tratamentos em regime de home care e avaliando a jornada do paciente no hospital com foco na eficácia e desfecho.
Os anestesiologistas podem vir a ser considerados hospitalistas perioperatórios, e sob supervisão desses profissionais diminuiria substancialmente vários indicadores importantes, como duração da estadia de internação, complicações perioperatórias, tempo para a recuperação da função intestinal, número de consultas e exames, custo por paciente, número de leitos/dia, etc. Mas se para as instituições hospitalares e os próprios pacientes o ganho seria evidente, para o profissional anestesista também não seria insignificante. Essa seria mais outra competência conquistada pela anestesiologia, mostrando que o conhecimento clínico na prática perioperatória que possui o anestesista poderá impactar a economia hospitalar e se tornar uma nova fonte de renda para a classe.
Apesar de, em teoria, essa ser uma ótima oportunidade para a anestesiologia, a prática nos hospitais do Brasil se mostra atualmente bem diferente, caracterizada principalmente pela influência do modelo de remuneração atual do anestesiologista, focado no volume de serviço e não na performance e no desfecho da internação hospitalar dos pacientes.
Confira abaixo a entrevista com o Dr. André Wajner, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Hospitalista SOBRAMH.
Entrevista com Doutor André Wajner, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Hospitalar (SOBRAMH)
1- Qual é a especialização médica de base predominante entre os membros da SOBRAMH?
Clínica médica/medicina interna.
2- Segundo seus dados, qual porcentagem do total de pacientes hospitalizados são cirúrgicos?
Se considerarmos os leitos de trauma como leitos cirúrgicos, temos em torno de 50-60% das internações relacionadas à equipes cirúrgicas.
3- Quantos médicos hospitalistas no Brasil possuem formação em anestesiologia?
Não dispomos desses dados, mas são muito poucos. Nos EUA, em que já existe a especialidade há mais de 20 anos, são muito poucos anestesiologistas que têm interesse em participar de todo o atendimento perioperatório.
4- Seria custo-eficiente a participação de anestesistas em medicina hospitalar no Brasil?
Acredito que os modelos de pagamento, hoje em dia, são muito vinculados ao maior pagamento para a produção cirúrgica. Dessa forma valorizam, de maneira muito mais importante a produção cirúrgica, estimulando que os anestesistas foquem seu cuidado, na maior parte do tempo, apenas no momento do ato cirúrgico.
Sem dúvida a participação do anestesista no momento pré e pós-operatório de maneira contínua tem alta probabilidade de diminuir cancelamentos cirúrgicos, tempos entre a internação e a cirurgia, entre a cirurgia e a alta hospitalar, e as complicações pós-operatórias.
5- Onde se formam os médicos hospitalistas no Brasil?
Atualmente ainda não existe uma formação definida no Brasil. Existe um modelo no terceiro ano (R3) de clínica médica do Grupo Hospitalar Conceição (RS) muito semelhante à formação de fellows em Medicina Hospitalar no EUA; um fellow no Hospital de Clínicas da USP e programas de capacitação de um ano de duração ministrados pela Sociedade Brasileira de Medicina Hospitalar.
Estamos participando de uma comissão do Conselho Federal de Medicina (CFM) junto com a Associação Médica Brasileira (AMB) formatando os pré-requisitos desse profissional. Existe uma forte tendência de a formação do médico internista passar para 3 anos, sendo o terceiro ano no modelo e preceitos de medicina hospitalar. Assim, no futuro, todo especialista em clínica médica apresentaria a formação de médico hospitalista, propiciando a disponibilidade de um novo profissional no mercado hospitalar brasileiro. Estive, por exemplo, recentemente com o Secretário de Saúde do Espírito Santo encaminhando uma parceria que irá propiciar treinamento de um ano em medicina hospitalar para profissionais de 12 hospitais públicos no ES. Estamos muito animados com o crescimento rápido dessa área de atuação no Brasil.
6- Quais disciplinas adicionais precisariam cursar (se for o caso) os especialistas anestesistas interessados em serem validados como hospitalistas?
Seriam todas as relacionadas à formação da especialidade. Gestão Hospitalar, liderança, trabalho em equipe, comunicação em saúde, ultrassom à beira do leito, co-manejo clínico-cirúrgico..
7- Estaria a SOBRAMH interessada em somar clínicos anestesistas à sua classe?
Seria muito interessante para a sociedade. Entretanto, não vemos no momento atual em modelo de remuneração fee for service um grande interesse por parte dos anestesistas nesse modelo assistencial. Caso as formas de remuneração evoluam para um modelo baseado em valor, não tenho dúvida que a medicina hospitalar se expandirá muito rápido no Brasil atraindo mais a atenção de diversos profissionais, inclusive dos anestesistas.
Formado em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Residência Médica em Clínica Médica pelo Hospital Nossa Senhora da Conceição /HNSC. Residência-R3 com área de atuação em Urgência pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Preceptor do Serviço de Medicina Interna do Hospital Nossa Senhora da Conceição com equipe de perioperatório e co-manejo clínico-cirúrgico. Mestrado em Avaliação de Tecnologia em Saúde e Epidemiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS. Fellow em epidemiologia pela Erasmus University e Netherlands Institute for Health Sciences (Rotterdam/Membro fundador da Sociedade Brasileira de Medicina Hospitalar. Doutorando em Cardiologia da UFRGS.