O gorila é um primata mamífero que compartilha conosco, os homo sapiens, cerca de 98% de seu DNA. É, portanto, um parente muito próximo dos humanos. Um macho adulto dessa espécie pode pesar 200 kg ou mais e possui força suficiente para erguer cerca de duas toneladas de peso usando apenas os membros superiores.
Entretanto, apesar de mais ágeis, mais fortes e maiores, com 12 bilhões de neurônios a menos no encéfalo, são menos inteligentes que nós, humanos. No nosso caso, somos menores, mais fracos, mas com uma capacidade complexa de raciocínio capaz de feitos incríveis. Isso faz com que não só dominemos os gorilas e controlemos seu habitat natural, como nos esforcemos para ter políticas e comportamento a fim de evitar a extinção desses animais.
O curioso é que agora estamos, a passos largos, criando uma inteligência um milhão de vezes maior que a nossa nas próximas duas décadas. Esperamos nos próximos anos liberar a inteligência contida na matéria como na década de quarenta Albert Einstein e outros físicos liberaram com uma explosão a energia contida na matéria, criando a bomba atômica. A explosão de inteligência esperada é do mesmo tamanho ou ainda maior segundo os teóricos que mimetizam em redes neurais digitais a maneira de se comportar com inputs e outputs dos neurônios cerebrais. A pergunta correta, portanto, não é se os robôs serão os próximos humanos, mas sim se nós seremos os próximos chimpanzés.
Iniciei este artigo com a maneira que encerro minhas palestras sobre o tema, pintando esse cenário exagerado, mas que ilustra bem o fato de que há muito no caminho que leva à inteligência artificial que precisa ser iluminado, discutido e entendido.
No âmbito da tecnologia da informação, a Lei de Moore, de 1965, se refere à velocidade com que a tecnologia dobra sua capacidade e potencial produtivo. Segundo Gordon Earl Moore, cofundador da empresa Intel, a cada 18 meses a capacidade de processamento de dados da tecnologia dobra, e seu custo cai pela metade ou ainda menos.
Acompanhamos essa lei com entusiasmo durante os anos oitenta, noventa e início dos anos dois mil. Após a virada do milênio, quase ninguém mais falou do teorema, pois a velocidade não só acelerou exponencialmente como revelou coisas fantásticas que penetraram no nosso cotidiano à revelia de nossos desejos ou necessidades, e não precisou mais recorrermos à Lei de Moore para explicar os avanços tecnológicos que criamos diariamente.
Na saúde, almejamos grandes feitos frutos do avanço tecnológico: a cura do câncer, o controle do Alzheimer, a vida eterna, ou apenas mais tempo de vida com melhor qualidade.
Na saúde, almejamos grandes feitos frutos do avanço tecnológico: a cura do câncer, o controle do Alzheimer, a vida eterna, ou apenas mais tempo de vida com melhor qualidade. Isso é o suficiente para nos nortear e empurrar para avante, e a Lei de Moore vai caindo no esquecimento como uma verdade tão absoluta que convive com as pessoas, semelhante às leis mais básicas da física, como a gravidade. Apenas acontece, e é assim que é.
Portanto, alcançarmos o estado de consciência situacional como rotulam alguns técnicos, ou simplesmente a inteligência artificial, é apenas uma questão de tempo. As primeiras previsões dataram esse momento único para o ano de 2050, mas hoje é comum ver em apresentações de slides de empresas jovens de tecnologia — as startups — a data de 2038 como a mais provável. E temos certeza de que esse número vai ficar ainda mais próximo conforme o tempo passa.
Para entender esse fenômeno, e o impacto que isso terá em nossas vidas e nosso cotidiano laboral, é preciso antes de tudo desmistificar esse monstro chamado inteligência artificial. Haverá certamente profissionais contra e a favor dessa novidade, alguns do lado de entusiastas inovadores e outros conservadores dispostos a defender as bases sagradas da medicina contra essa evolução.
Para que as discussões atuais e futuras sejam frutíferas, conversar sobre o tema sob a ótica do entendimento de conceitos básicos é fundamental. Todos nós assistimos atônitos há poucos dias os embates em torno da telemedicina; e ficou claro que o desconhecimento dos conceitos, regras e tecnologia envolvida, bem como a função dos players e do mercado, são desconhecidos da maioria da classe médica; e isso provoca um enorme ruído que pouco colabora para a elaboração de conceitos claros e pontos de vista úteis.
Em primeiro lugar precisamos lembrar que o conceito de inteligência é “a capacidade de processar informação”. Portanto, em um jogo simples de substituição de palavras, o termo inteligência artificial é a capacidade de processar informação de maneira não natural, ou através de máquinas.
Isso não é novidade. Na verdade, nada na inteligência artificial é novidade além da sua aplicabilidade. Enquanto nossas células responsáveis pelo raciocínio — os neurônios — funcionam a uma velocidade de 200 ciclos por segundo, ou seja, 200 hertz, e comunicam-se entre si a uma velocidade de 100 metros por segundo, qualquer smartphone no bolso de um profissional anestesiologista na atualidade possui velocidade de processamento de informação na casa dos giga-hertz (um bilhão de vezes mais rápido) e conecta-se à internet em velocidades de troca de informação que, no caso da fibra óptica, corresponde à velocidade da luz, ou seja, quase trezentos bilhões de metros por segundo.
Fácil de visualizar que a tecnologia disponível, portanto, é muito mais rápida para processar e compartilhar informações. Ou seja, em teoria, a inteligência das máquinas já é muito maior que a nossa humana.
O que está faltando então para essa inteligência das máquinas ser realidade? Está faltando ainda a capacidade de pensar.
Pensar é uma faculdade de nossa inteligência que permite aos seres humanos fazer uma modelagem do mundo ao redor de si, e com isso alcançar metas, fazer planos e até possuir desejos.
A dedicação das empresas de tecnologia que trabalham almejando a inteligência artificial é em ensinar as máquinas a pensar, e pensar certo, com um objetivo específico com a menor margem de erro possível.
Mas o que isso tem a ver com a anestesia que fazemos no nosso dia a dia? Mais do que você imagina.
A maneira que usamos para ensinar as máquinas a pensar nada mais é que nossa boa e velha estatística com seus cálculos descritos no século XIX e que consumimos em todo o conteúdo científico que lemos nos periódicos técnicos diariamente. É através de processamento de grandes quantidades de informação e testes matemáticos que mostrem veracidade e relevância da informação que as máquinas poderão entender problemas, mimetizar cenários, reconhecer padrões e apontar soluções. Como eu disse, não há nada de novo nessa tal de inteligência artificial.
Estando, portanto, a capacidade de processamento instalada na tecnologia disponível, e o conhecimento de como fazer a máquina “pensar” através de cálculos estatísticos e simulação de cenários, o que nos falta então para atingir o horizonte que chamamos de “singularidade”?
Singularidade é por conceito teórico o momento exato onde a máquina terá a consciência de adquirir informação, processá-la, aprender com ela e então tomar decisões sem a interferência do homem e de seus comandos. Ou seja, a máquina terá consciência do meio onde está inserida e mais, terá consciência da sua existência e até quem sabe… desejos!
O que nos falta basicamente é a informação. Principalmente em saúde e, em particular, na anestesiologia, a informação disponível para o aprendizado das máquinas é quase irrisório. Ou seja, nos faltam dados bem organizados e disponíveis para que sejam transformados em conhecimento e capacidade de compreensão.
O desafio dos dados, em plena era que chamamos de “Era do BigData”, é enorme. O primeiro desafio são os erros, pois erramos muito na produção de informações em saúde, desde o diagnóstico, tratamento, até o simples português gramatical. O estudo “Errar é Humano” já tem quase duas décadas, e sabemos que ainda continuamos errando.
O segundo desafio é a falta de infraestrutura. Ainda usamos em saúde muitos prontuários em papel e prontuários eletrônicos com texto livre e linguagem natural. Esse tipo de dado não gera informação e conhecimento e mesmo com os avanços da tecnologia em análise de dados não estruturados, ou seja, desorganizados, isso ainda requer muito esforço para ganhos mínimos.
Vencidas essas barreiras, chegamos ao dilema do benefício mútuo. Novas relações em saúde se fazem necessárias, com mais compartilhamento de informações com o paciente no centro do processo e não as instituições e seus posicionamentos de mercado e lucro. Você consegue enxergar seu hospital privado compartilhando dados do procedimento cirúrgico de um paciente com o clínico do posto de saúde do SUS? Ainda não? Pois é. Sem o fim da desconfiança e interesses corporativistas dos players de mercado não há massa crítica de informação disponível para máquinas ficarem inteligentes.
Para tudo isso acontecer, ainda precisamos da interoperacionalidade, ou seja, a conexão e troca de informações no mesmo “idioma” tecnológico também precisa ser realidade. Esse tipo de integração é um dos maiores e mais ásperos desafios, pois, na prática, as grandes empresas que cuidam das informações nos prontuários eletrônicos mais comuns nos hospitais brasileiros não possuem interesse, capacidade, tecnologia ou maturidade jurídica para se conectarem com iniciativas inovadoras mais avançadas como startups de tecnologia em saúde, e assim sufocam de dentro para fora a inteligência contida na massa de dados que os hospitais produzem.
E por último o maior de todos os desafios, a privacidade. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) tenta regulamentar e proteger informações chamadas sensíveis do indivíduo. Em saúde, praticamente todos os dados são considerados como fazendo parte desse espectro. Portanto, fazer essa informação transitar com segurança e privacidade preservada é uma coisa muito maior e mais complexa do que campos de login e senha em plataformas interconectadas.
Essa rápida análise fica ainda longe de frear ou inviabilizar o advento da inteligência artificial, mas desmistifica o tema e mostra que existe muita coisa a ser feita até o alcance de um desempenho desejável e que traga realmente benefícios à saúde nossa e de nossos pacientes.
Apesar de todo o esclarecimento técnico até aqui para elucidar o tema, provavelmente a pergunta que o leitor ainda se faz seja a mesma de quando começou a ler o texto: “Afinal, seremos substituídos por robôs?”
A pergunta possui uma resposta muito simples e uma explicação que nos leva a uma profunda reflexão.
A resposta para essa pergunta é um sonoro “não”. Médicos em geral, e em especial anestesiologistas, definitivamente não serão substituídos por robôs, mesmo Sebastian Thurn tendo provado que diagnósticos de melanoma são feitos mais rápidos e melhores por máquinas e Geofrey Hinton — tataraneto de George Boole, criador da teoria booleana, base da era da informática — dizer que devemos parar de formar radiologistas imediatamente.
O que nos falta basicamente é a informação. Principalmente em saúde e, em particular, na anestesiologia, a informação disponível para o aprendizado das máquinas é quase irrisório.
A máquina, por melhor, mais completa e mais munida de informação que seja, nunca vai conseguir desempenhar habilidades humanas naturais, como por exemplo, a empatia. Na verdade, acredito que a inteligência das máquinas tem, como mais nobre objetivo na saúde, salvar os profissionais da robotização do nosso cotidiano assistencial. Estudos mostram que em um consultório, um médico passa 70% do tempo de um atendimento olhando a tela do computador e apenas 30% olhando nos olhos do paciente. Em hospitais, um plantonista passa pelo menos duas horas por turno preenchendo prontuários e, no nosso caso, durante o procedimento anestésico, chegamos a dispender 40% do tempo do transoperatório preenchendo o registro anestésico em papel.
A tecnologia, portanto, não tem em seu core a intenção da substituição, mas em uma visão mais ampla, de resgate do que chamamos de habilidades humanas na prática diária.
Habilidades humanas como relacionamento interpessoal, capacidade de se comunicar, motivar, coordenar, liderar e resolver conflitos pessoais são fundamentais para pontos de suma importância na assistência, como a segurança do paciente, por exemplo. E aqui reside o maior impacto da inteligência artificial na prática anestesiológica: em um futuro próximo, em um ambiente e mercado onde a tecnologia e a robotização serão comoditizadas, ou seja, comum e presente em todas as instituições, as nossas habilidades humanas terão mais importância na avaliação de nosso desempenho do que nossa habilidade técnica.
Um colega virtual, sem rosto ou forma, que sabe muito mais que nós e que está sempre disponível para ajudar estará presente em todas as salas de cirurgia fazendo dupla com o anestesiologista. Certamente você até o chamará por um nome como Siri, Alexia ou outro.
E este, complementando nossas deficiências técnicas em tempo real, nos deixará mais seguros, descansados e livres para nos relacionarmos e melhorarmos a experiência de nossos pacientes usando como ferramenta aquilo que só, nós, humanos temos: a alma.
Essa é a verdadeira esperança que a inteligência artificial traz para a medicina. O resto todo é hype.
Veja esse e outros texto na íntegra na edição desse mês da Anestesia em Revista. Acessando o link abaixo ⬇ ⬇