Imaginemos o futuro: serviços de anestesia de alta complexidade totalmente automatizados, com monitores de carrinhos de anestesia e bombas de infusão digitalmente interconectadas e íntegramente controladas por softwares sofisticados, com intervenção pontual do anestesiologista durante o processo anestésico. Consegue? Não só será possível mas inevitável.
Faz 10 anos o Dr. Thomas Hemmerling, anestesiologista e professor da Universidade McGill, de Montreal, Canadá e diretor de ITAG (Intelligent Technology in Anesthesia research group), criou com o seu grupo um sistema autônomo de anestesia ao qual chamaram divertidamente “McSleepy”. O sistema era capaz, através do monitoramento de três parâmetros separados: hipnose, analgesia e relaxamento muscular, de processar informações do paciente por meio de algoritmos complexos baseados em regras, para assim, controlar por retroalimentação em circuito fechado (closed-looping), a administração de drogas das bombas de infusão.
A primeira aplicação prática do sistema McSleepy foi durante uma nefrectomia parcial de 3 horas e 30 minutos. O Dr. Hemmerling, num excesso de otimismo, descrevia o seu sistema como “sorte de humanoide capaz de pensar como um anestesiologista, analisar informação biológica e constantemente adaptar o seu comportamento, até inclusive reconhecer erros de monitoramento”. Segundo a suas projeções o sistema precisaria mais dois anos de aperfeiçoamento e poderia ser comercializado nos seguintes cinco anos. Porém isso não aconteceu. Por que?
A verdade é que McSleepy estava no cume do desenvolvimento tecnológico da década passada, mas muito longe de ser um hardware humanóide anestesista. Seu calcanhar de Aquiles era talvez a robustez dos algoritmos baseados em regras rígidas de respostas a variações esperadas dentro de intervalos de valores específicos, sem capacidade real de adaptação e aprendizado a partir dos próprios dados, ou seja sem machine learning. A administração anestésica total que conseguiram realizar faz dez anos com McSleepy seria equivalente à aterrisagem na lua da Apollo 11 em 1969: titânica, mas excessivamente arriscada.
O próprio Hemmerling falava com preocupação sobre a resistência da classe dos anestesistas em confiar em sistemas automatizados, por temor à “caixa preta” de funções invisíveis que pudessem eventualmente tomar o controle do procedimento anestésico e enfatizava a necessidade de desenvolver interfaces claras, legíveis que registrassem e espelhassem detalhadamente o que estava acontecendo durante todo o processo anestésico.
A Anestech resenha com admiração o pioneirismo de ITAG e a sua ferramenta McSleepy e tira da sua história uma importante moral: independentemente do grau de automatização anestésica que a tecnologia permita alcançar, será a clareza e confiabilidade dos dados do procedimento o que vai garantir a confiança na aplicação dele, somadas às habilidades humanas do anestesiologista na cabine de comando.